JOGOS TEATRAIS E O SOCIOINTERACIONISMO: POSSIBILIDADES DE APRENDIZAGEM INTERATIVA NO ENSINO FUNDAMENTAL I

RESUMO: Este artigo teve como principal objetivo apresentar o Sistema de Jogos Teatrais de Spolin (1992; 2006) e refletir sobre a sua relação com a teoria Sociointeracionista proposta por Vygotsky (2000; 2010). Para tanto, estabelecemos alguns pontos de intersecção, tais como: interação, desenvolvimento coletivo e mediação da aprendizagem. Apresentamos também o amparo legal, representado pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 2001) com intuito de discutir, mesmo que brevemente, a relevância do uso do Teatro nas salas de aula dos anos iniciais do Ensino Fundamental I. Para tais discussões optamos como metodologia a pesquisa bibliográfica, que possibilitou avistar possibilidades concretas e motivadoras no uso dos jogos teatrais como prática pedagógica no Ensino Fundamental I, não só por meio do viés cognitivo, mas pelo contexto histórico e social. Como contribuição, identificamos que os jogos teatrais constituem-se uma prática possível e atendem um contexto educacional que valoriza os conhecimentos reais dos alunos, o contexto em que estão inseridos, oferecendo-lhes oportunidades de desenvolvimento do conhecimento concreto e significativo.
Palavras-chave: Jogos Teatrais, Interação, Aprendizagem, Sociointeracionismo, Desenvolvimento, PCN.
ABSTRACT: This study aimed to present Spolin’s Theater Games System (1992; 2006) and to reflect on its relation with Vygotsky’s Social Interactionist Theory (2000; 2010). To that end, we established some points of intersection, such as: interaction, collective development and mediation of learning. We also present the legal support, represented by the National Curriculum Parameters (BRAZIL, 2001) with the aim to briefly discuss the relevance of the use of Theater in the classrooms of the early years of elementary school I. For these discussions, we chose the literature review, which enabled visualizing concrete and motivating possibilities in the use of theater games as a pedagogical practice in elementary school I, not only through the cognitive bias, but also through the historical and social context. As a contribution, w e identified that theater games are a possible practice that meets an educational context that values the real knowledge of the students, the context in which they are, thereby by offering them opportunities for the development of concrete and significant knowledge.
Keywords: Theater Games, Interaction, Learning, Social Interactionism, Development, PCN.

INTRODUÇÃO

A experiência com base em arte tem sido bastante relevante no âmbito educacional, visto que muitas pesquisas têm tentado elucidar em que medida a experiência artística contribui para o espaço da sala de aula.
Nos últimos anos a pesquisa em torno das possibilidades de aprendizagem com base nos jogos teatrais (doravante JT) tem crescido de forma bastante relevante, pois através deles tanto alunos, como professores saem da sua posição estática e passam a trabalhar em grupo, interagindo e buscando soluções para o problema a ser solucionado.
Diante de tais pesquisas se faz necessário enxergar a prática teatral não somente como encenações de datas comemorativas ou mesmo festividades de final de ano, mas avistar em seu uso novas possibilidades no processo ensino aprendizagem. Assim surgiu a necessidade de buscar bases teóricas que fundamentem o uso dos JT na sala de aula como aglutinador do conhecimento, dentre tantas, citamos algumas abaixo que serviram de referência para este trabalho:
– “Jogo, brincadeira e prática reflexiva na formação de professores” (LOMBARDI, 2005), cujo objetivo foi mostrar como o lúdico influencia de maneira positiva na formação de professores, tornando-os mais reflexivos, através do entendimento do processo educativo utilizando-se de JT.
– “Jogos teatrais na escola: um estudo de caso acerca de interações e aprendizagens” (KAMEL FILHO, 2009), que objetivou, através do uso dos jogos teatrais e da interação, melhorias na socialização, comunicação, concentração e argumentação das crianças.
– “Contar histórias com o Jogo Teatral” (FARIA, 2002), em que o principal objetivo foi trabalhar narrativa em experimentação com os JT e suas possíveis relações.
– “Contribuições dos Jogos Teatrais para o ensino de Língua Estrangeira” (PINHEIRO, 2014), cuja intenção era identificar possíveis práticas que apontassem os jogos teatrais como técnica de ensino que pudesse potencializar um ensino pautado na interação, colaboração e autonomia dos alunos.
Além dos trabalhos científicos apresentados, optamos por investigar o documento que norteia e torna o ensino do teatro obrigatório nas salas de aula dos anos iniciais do ensino fundamental, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) (BRASIL, 2001), da disciplina de Artes, que nos mostra claramente a função do ensino de teatro como instrumento que proporciona ao educando um desenvolvimento global de suas capacidades:

O teatro no ensino fundamental proporciona experiências que contribuem para o crescimento integrado da criança sob vários aspectos. No plano individual, o desenvolvimento de suas capacidades expressivas e artísticas. No plano do coletivo, o teatro oferece, por ser uma atividade grupal, o exercício das relações de cooperação, diálogo, respeito mútuo, reflexão sobre como agir com os colegas, flexibilidade de aceitação das diferenças e aquisição de sua autonomia como resultado do poder agir e pensar sem coerção.( BRASIL, 2001, p.58)

A citação acima deixa claro que o uso do teatro promove melhorias nas relações sociais, dessa maneira o objetivo desse trabalho foi mostrar como os JT podem contribuir para tais melhorias, para tanto embasamos nossa pesquisa na relação da teoria sociointeracionista de Vygotsky (2001), que traz o princípio de que o homem evolui através das relações sociais e na metodologia proposta por Spolin (2006) que apresenta um sistema de jogos sob a forma de fichário com a ideia de que a aprendizagem é realizada a partir da resolução de problemas, que acontece na interação, atuação e autonomia dos alunos.
Isso posto, iniciamos a primeira seção que mostrou o Sistema de JT de Spolin, seguiu-se com a segunda seção onde foi feito um apanhado da importância do ensino do teatro segundo os PCN (BRASIL, 2001) e de como os JT estão diretamente ligados ao que o documento exige, e, por fim, na terceira seção dissertamos sobre a teoria sócio interacionista de Vygotsky relacionando-a com o uso dos JT, além de alguns exemplos de JT que contribuem para a interação e desenvolvimento social da criança.

O SISTEMA DE JOGOS TEATRAIS DE VIOLA SPOLIN

É importante conhecer o sistema spoliano para que se possa entendê-lo e aplicá-lo em sala de aula, além disso, refletir sobre esta metodologia pode abrir espaço para uma nova configuração no desenvolvimento das aulas, principalmente aquele pautado na interação e na construção do conhecimento.
A autora que serve de base teórica para nosso trabalho, Spolin (1906-1994), apresentou o sistema de jogos teatrais em 1963, no livro Improvisation for theTeatre, cujo formato original foi criado para ensinar técnicas teatrais para estudantes, diretores e escritores que buscavam novas formas de fazer teatro, dedicando-se à descoberta de novas formas de comunicação, ao teatro em grupo e à criação coletiva. Durante mais de dez anos Spolin desenvolveu oficinas de trabalhos experimentais práticas, para crianças de sete a quatorze anos, na Young Actors Company, em Hollywwod. (KOUDELA, 1992).
Nesse contexto, os JT de Viola Spolin tornaram-se referência em 1968, quando foi realizado um projeto estadual em Missouri, cujo objetivo era incluir a disciplina de artes no currículo escolar do Estado daquele país. O projeto incluía a aplicabilidade do teatro para todos os alunos. Assim em 1975, a autora publica o livro Teather Game File, organizado em forma de fichário, que busca a caracterização dos JT com o intuito de torná-los úteis e aplicáveis fora e dentro das salas de aula. (KOUDELA, 1992)
Segundo Lombardi (2005), o sistema de JT é uma metodologia, que contém um processo pedagógico teatral e pode ser aplicado em qualquer campo do ensino, pois possibilita um espaço real e possível para a interação.
Koudela (2010, p.15) acrescenta que “Os jogos teatrais são ao mesmo tempo atividades lúdicas e exercícios teatrais que formam a base para uma abordagem alternativa de ensino e aprendizagem”.
No Brasil, a pesquisadora e professora de Teatro-Educação da USP Ingrid Dormien Koudela, traduziu os livros de Spolin e realizou diversas experiências práticas utilizando a metodologia do sistema de JT, documentando os resultados em seus livros “Jogos Teatrais” (1992) e “Texto e Jogo” (2010). Neste último a autora nos dá sugestões de como usar o fichário, relatando que o mesmo pode ser utilizado de forma a atender as necessidades particulares de cada grupo, cabendo ao professor escolher a ficha adequada para o momento na sala de aula.
Em sua constituição material o fichário é composto por fichas individuais, cada uma contendo um jogo ou exercício, todos são descritos de forma padronizada, o tamanho das fichas são de 13,5cm x 20,5cm, conforme segue abaixo:

Título
(chave para rápida
identificação reconhecimento
dom jogo/ exercício) Letra-Código Numérico
(seções A, B e C: cada seção
Inicia de novo com 1
PREPARAÇÃO
Aquecimentos (Jogos para iniciar a oficina)
Jogos Introdutórios (Jogos que naturalmente introduzem ao jogo uma pauta).
Instruções do coordenador (Requisitos de participação – plateia ou grupo todo; objetos de cena necessários, etc.).
FOCO
O ponto focal do jogo; um instrumento para adquirir experiência o FOCO pode ser lido diretamente para a classe
DESCRIÇÃO
Como jogar – regras, limites, número de jogadores por time, limites de horário etc.; pode ser lido em voz alta para a classe.
INSTRUÇÃO
Enunciados para o coordenador que devem ser falados durante o jogo para manter os jogadores com o FOCO participando do jogo; os enunciados para Instruções estão impressos em ambos os lados da ficha.
AVALIAÇÃO
Questões objetivas para manter a discussão afastada de julgamentos pessoais – bom ou mal – e presente no FOCO do problema a ser solucionado no jogo;
NOTAS
Pontos de observação para o professor, que atua dando instruções para auxiliar na compreensão, apresentação, instrução e avaliação do jogo.
ÁREAS DE EXPERIENCIA
Tipo de jogo; sugestões para correlações curriculares.
Quadro 1: Modelo de ficha (SPOLIN, 2006, p. 23)

Os jogos são divididos em três seções (A, B, e C), que Spolin (2006) nos explica da seguinte maneira: na seção A estão os jogos teatrais estruturados e jogos tradicionais que revelam a dinâmica pessoal inerente ao jogo; na seção B estão os jogos teatrais com foco nas convenções e estruturas teatrais: Onde (cenário/ambiente), Quem (personagem/ relacionamento) e O Quê (atividade); já na seção C encontram-se jogos com conteúdos que complementam e aprofundam os das seções A e B.
O fichário mostra três etapas que são essenciais para a compreensão dos JT, vistos por Spolin (2006) como os pilares da metodologia, são eles: foco, instrução e avaliação, realizados em dois momentos: o encontro e o processo. O primeiro está relacionado à reunião de determinado grupo que possui um foco a ser realizado, enquanto o segundo é o próprio desenvolvimento do jogo até seu término com o objetivo concluído.
O foco é dado como um problema essencial, que pode ser solucionado pelos jogadores, ele não é o objetivo do jogo e sim um instrumento para que o aluno se encontre no jogo, determinando o que deve ser feito ou não. Sendo assim, Spolin (2006) afirma que “o esforço para manter o foco e a incerteza sobre o desfecho diminuem atitudes de defesa, criando auxílio mútuo e gerando envolvimento orgânico no jogo na medida em que ele se desenvolve”.
Pinheiro (2014) nos apresenta que o foco acontece de maneira simultânea à fase da instrução, e consiste no momento contínuo de fiscalização de um objeto (o que), personagem (quem) ou lugar (onde) para que a execução do JT alcance a resolução do problema. Esse momento pode ser compreendido como aquele em que todas as energias dos jogadores estão focalizadas para solucionar problemas de linguagem e comunicação.
A instrução, de acordo com Spolin (2006), se dá por meio de enunciados de palavras ou frases que mantêm os jogadores atentos ao foco, ela deve conduzir o processo teatral, libertando emoções e pensamentos ocultos, mas sem interromper a ação ou o diálogo, deve ser dada em voz alta e clara. A instrução permite que o professor participe de jogo.
Ainda a respeito da instrução Lombardi (2006) acrescenta que, ao usá-la, o professor age como condutor e auxília o jogador na sua concentração por meio de uma intervenção pedagógica que propõe desafio aos participantes de forma clara, precisa e possível.
A avaliação, que segundo Spolin (2006) ocorre sempre que um problema é solucionado, não é crítica e é livre de julgamentos, ela surge a partir do foco, levando a discussões entre jogador e plateia. Assim, essa fase deve ser entendida pelo professor como o momento de compartilhar opiniões e propiciar que os alunos que se encontram na plateia passem de participantes passivos a participantes ativos do problema.
A esse respeito Pinheiro (2014) afirma que o momento da avaliação é compreendido como um local de reflexões, ajustes e avanços no processo de ensino e aprendizagem.
Desse modo, para maior amplitude de conhecimento sobre o tema, apresentaremos a seguir uma breve descrição de alguns termos inerentes a prática dos JT, para que se compreenda melhor essa nova metodologia como possível ação pedagógica em sala de aula, cujo um dos focos esta na interação. Para isso nos valemos da sistematização de Pinheiro (2014):

• A solução de problemas: está diretamente relacionada ao foco. Usada nas oficinas, essa técnica propõe um objetivo mútuo para professor e aluno.
• A plateia: diz respeito ao grupo de jogadores que atuam como observadores enquanto outro grupo vivencia diversas estratégias de improvisação para a solução do problema.
• A improvisação: consiste na abertura para entrar em contato com o ambiente e com o outro, é a vontade de jogar.
• A fiscalização: é a capacidade que os jogadores possuem em tornar visíveis para os observadores do JT objetos, atitudes, sensações, ações e papéis por eles representados.
• A espontaneidade: consiste na interação entre os jogadores sem planejamento ou ensaio prévio, autoritarismo e da resolução pré-determinada de um problema.
• A expressão do grupo: refere-se a um relacionamento amistoso durante o trabalho do grupo, sem competição. (Pinheiro, 2014, p.18-19)

Ainda em favor da relevância dos JT no ambiente escolar, Ribeiro (2004) ressalta que o ensino de teatro tem grande importância, pois permite a experimentação e proporciona um autoconhecimento ao educando, levando-o a conhecer seus limites e potencialidades para assim ultrapassá-los, cumprindo assim o principal objetivo da educação, que é o de libertar o indivíduo por meio de formação e informação.
Sobre a aplicabilidade dos JT em sala de aula, Spolin (2006) sinaliza:

Jogos teatrais, experimentados em sala de aula, devem ser reconhecidos não como diversões que extrapolam necessidades curriculares, mas sim como suportes que podem ser tecidos no cotidiano, atuando como energizadores e/ou trampolins para todos. Inerente a técnicas teatrais são comunicações verbais, não verbais, escritas e não escritas. Habilidades de comunicação, desenvolvidas e intensificadas por meio de oficinas de jogos teatrais com o tempo abrangem outras necessidades curriculares e a vida cotidiana. (Spolin, 2006, p.20)

A citação evidencia que os JT podem ser usados em sala de aula para promover a interação, a busca do foco durante o fazer e a comunicação em grupo, além de auxiliarem nas habilidades e competências para que os alunos possam lidar com novos conhecimentos. Tudo transmitido de maneira lúdica e prazerosa, tirando os alunos da posição estática e levando-os a ser mais espontâneos e criativos.
A esse respeito Kamel Filho (2009) classifica os JT como mobilizadores e materializadores da energia humana, com função pedagógica extraordinária, transmissores do aprendizado de forma lúdica, que ao conduzirem alunos/atuantes no desenvolvimento de performances artísticas, estabelecem uma forma de criação articulada com as subjetividades de cada um, em face dos mais variados exercícios propostos. Em face de participação dos JT, os alunos aprendem regras, lidam com situações pouco familiares sem perder o sentido de grupo ou o foco. Professor e aluno abandonam posições opostas e revelam-se parceiros: diretor e ator.

OS PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS E OS JOGOS TEATRAIS

O ensino de Artes na Educação Básica passou a ser vigorado com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996 (lei n. 9.394/96), que trouxe a disciplina como “[…] componente curricular obrigatório, nos diversos níveis da educação básica, de forma a promover o desenvolvimento cultural dos alunos”. (BRASIL, 1996). Dessa forma a arte passou a ser considerada uma área da educação com seus próprios conteúdos ligados à cultura artística e não mais apenas como uma atividade. (BRASIL, 2001)
Os Parâmetros Curriculares Nacionais para a Educação Fundamental (PCN) da disciplina de Artes (BRASIL, 2001) trazem o teatro como uma das linguagens da Arte, e deixam explícito que o mesmo deve fazer parte do processo de formação da criança, não só para integrá-la, mas também para torná-la crítica e capaz de construir os conteúdos culturais e sociais da comunidade que vive. Assim sendo, cabe à escola elaborar propostas educacionais que compreendam a atividade teatral como um conjunto de atividades que proporcionem o desenvolvimento global do educando.
Ainda segundo os PCN (BRASIL, 2001), quando a criança começa a frequentar a escola, possui capacidades dramáticas, como potenciais e práticas espontâneas vivenciadas através dos jogos de faz-de-conta e é preciso que a escola continue esse trabalho de desenvolver essa linguagem dramática, para que a criança não perca a espontaneidade lúdica e criativa. Para tanto, cabe ao professor oferecer estímulos por meio de jogos preparatórios que desenvolvam habilidades como atenção, concentração e que estimulem a criação do aluno para a progressão e domínio da linguagem teatral.
Em consonância ao que os PCN nos mostram sobre as capacidades dramáticas presentes na criança, Courtney (2001, p.56) defende que “a imaginação criativa da criança é dramática em sua natureza”, ou seja, ela nasce com a criança, e evolui com o passar do tempo, e que “o jogo da criança é uma entidade em si mesma, com seu próprio valor.” Sendo assim, a imaginação dramática faz com que a criança se torne capaz de compreender e aprender o mundo que a rodeia, e através do jogo dramático ela tem a oportunidade de se expressar através do movimento criativo e de se tornar mais espontânea para se relacionar melhor.
A esse respeito Koudela (2002) afirma:

[…] o jogo é conceituado a partir das fases da evolução genética do ser humano e entendido como instrumento de aprendizagem, promovendo o desenvolvimento da criatividade, em direção à educação estética e práxis artística. Nesse sentido, o jogo teatral é um jogo de construção em que a consciência do ‘como se’ é gradativamente trabalhada em direção à articulação da linguagem artística do teatro. No processo de construção dessa linguagem, a criança e o jovem estabelecem com seus pares uma relação de trabalho, combinando a imaginação dramática com a prática e a consciência na observação das regras do jogo teatral. (Koudela, 2002, p.233-234)

O teatro, como sugere os PCN, deve ser trabalhado em três eixos que serão brevemente descritos abaixo:
– O teatro como expressão e comunicação, diz respeito à participação e ao desenvolvimento de conteúdos compostos por jogos de atenção, observação e improvisação, desenvolvimento da linguagem dramática, assim como da ação e da atuação, experimentações que contemplem expressões corporal, plástica e sonora e improvisação a partir de temas, textos dramáticos, situações físicas, imagens, sons, objetos, improvisação através das regas do jogo, criação dramática e reconhecimento, utilização da comunicação e expressão na criação teatral.
Nesse sentido Ribeiro (2004) afirma que o teatro tem como contribuição mais expressiva a utilização dos JT, pois eles desprendem a criatividade, estimulam o trabalho em equipe, tornando o relacionamento em grupo melhor, tiram o aluno do seu estado estático para a espontaneidade, permitindo que o mesmo faça trabalhos de descobertas, experimentação e criação, proporcionando assim seu melhor rendimento durante as aulas, independente da disciplina.
– O teatro como produto cultural e apreciação estética, contempla os conteúdos conceituais, como pesquisas e identificação de fatos da história do teatro, compreensão e análises das diferentes formas de manifestação teatral (teatro, circo, teatro de bonecos), registros de experiências observadas, e valorização da cultura regional do aluno, através de participação e pesquisa sobre possíveis grupos teatrais e espetáculos realizados em sua região.
A esse respeito Barbosa (2007) concebe que a arte como cultura e como expressão corporal é um instrumento importante para o desenvolvimento individual e para a identificação cultural do educando, pois através dos novos conhecimentos é possível analisar a realidade e desenvolver criatividade para mudá-la. É preciso ter o conhecimento crítico, entender os conceitos sociais e históricos que norteiam o aprendizado da arte como disciplina, para que haja um aprendizado significativo e reflexivo.
– O teatro como produção coletiva, é o trabalho baseado na interação ator-platéia, na solidariedade, no reconhecimento do grupo como um todo, na participação e no respeito mútuo, na socialização durante as cenas e improvisação, critérios que são importantes para o entendimento do teatro como trabalho coletivo, pois contribuem para a formação social do educando.
Nesse contexto, Pinheiro (2014) afirma que os JT são apresentados como instrumentos agregadores de atividades construtivas, que criam oportunidades para a interação, e através da negociação os alunos promovem uma comunicação espontânea e trocam conhecimentos, compreendem e são compreendidos pelo grupo, pois durante os JT os alunos tem uma aprendizagem colaborativa, com oportunidades iguais para falar, se expressar, criar suas hipóteses e negociar com o grupo e consigo, entendendo assim que faz parte de todo o processo durante o aprendizado.
Diante do exposto fica evidenciado que o uso dos JT contribui de forma significativa nas salas de aula como possibilidade de aprendizagem e se relaciona ao que dispõe os PCN, pois desenvolve todos os eixos propostos pelo documento. Para Ribeiro (2004), o ensino de artes é de grande importância para facilitar e estimular a educação, pois a arte é parte do ser humano, distinguindo-o dos demais animais. Os JT, além de aguçar a criatividade da criança e promover sua autonomia, desenvolvem a sensibilidade das crianças para os relacionamentos pessoais e para a prática social cooperativa, que, segundo o autor (2004), são essenciais, visto que são raras, pois a sociedade promove o distanciamento das pessoas.

O SOCIOINTERACIONISMO DE VIGOTSKY E OS JOGOS TEATRAIS

Como já exposto nas seções anteriores os JT contribuem de forma significativa na interação e nas relações sociais, para Spolin (1992, p.4) “o jogo é uma forma natural de grupo, que propicia o envolvimento e a liberdade pessoal necessários para a experiência”, através do jogar são desenvolvidas habilidades pessoais e técnicas necessárias para o próprio jogo, quando joga, a criança abre espaço para a inventividade e para a ingenuidade, e ambas ajudam a solucionar os problemas que aparecem durante o jogo da maneira que julgar melhor.
A autora concebe ainda que todo jogo é social e traz um problema a ser solucionado, fazendo com que o indivíduo se envolva, através da interação e do acordo de grupo, para que se atinja o objetivo proposto pelo jogo, e quanto mais o aluno se envolve com o jogo, mais ele cresce dentro do jogo, isso faz com que o aluno se torne espontâneo e se liberte física e intelectualmente, e assim:

Todas as partes do indivíduo funcionam juntas como uma unidade de trabalho, como um pequeno todo orgânico dentro de um todo orgânico maior que é a estrutura do jogo. Dessa experiência integrada, surge o indivíduo total dentro do ambiente total, e aparece o apoio e a confiança que permite ao indivíduo abrir-se e desenvolver qualquer habilidade necessária para a comunicação dentro do jogo. Além disso, a aceitação de todas as limitações impostas possibilita o aparecimento do jogo ou da cena, no caso do teatro. ( Spolin, 1992, p.5-6)

Vygotsky (2010) em seus estudos faz alusão ao jogo de regras, e afirma que quando a criança joga se envolve numa situação imaginária e se coloca totalmente no jogo, criando suas próprias regras dentro do jogo. Nesse sentido, a criança desenvolve seu aprendizado, pois se relaciona com o ambiente sócio-cultural em que está inserida, absorvendo novos conhecimentos e despertando seus sentidos para novas formas de aprender.
Assim, de acordo com estas características, podemos dizer que o jogo pode promover a aprendizagem a partir do coletivo, em que os aprendizes relacionam suas experiências individuais com as situações do meio em que estão inseridos. Desse modo, é possível afirmar que os JT são instrumentos que propiciam a interação entre aluno, conhecimento e as coisas e objetos do mundo.
Sobre os benefícios do jogo em relação à aprendizagem por meio dos moldes sócio-culturais relembramos Vygotsky (2000), o qual acredita que:

O jogo cria uma zona de desenvolvimento próximo na criança. Durante o mesmo, a criança está sempre além de sua conduta diária; no jogo, é como se fosse maior do que na realidade. Como no foco de uma lente de aumento, o jogo contém todas as tendências evolutivas de forma condensada, sendo em si mesmo uma considerável fonte de desenvolvimento. (Vygotsky, 2000, p.156)

A citação nos coloca diante da teoria da zona de desenvolvimento proximal (ZDP), amplamente desenvolvida por Vygotsky (2010) que traz a concepção central de que o desenvolvimento e a aquisição do conhecimento ocorrem por meio da interação.
Na ZDP há dois níveis de desenvolvimento: o primeiro, conhecido como real, consiste no conhecimento já formado/conhecido, em que a criança é capaz de resolver determinado problema de maneira independente; já o segundo, que recebe o nome de potencial, consiste no conhecimento que a criança possa vir a ter a partir da interação com um ou mais colegas.
A partir dos níveis de desenvolvimento discorridos anteriormente, podemos identificá-los claramente durante a prática de JT se entendermos que antes da realização do jogo o aprendiz dispõe de seu conhecimento real e que será modificado em todo o decorrer da atividade. Dessa forma, estamos diante de um contexto de ensino que valoriza o desenvolvimento potencial de cada aluno, respeitando seus ritmos, aceitando suas individualidades.
Diante dessa perspectiva, de relacionar os JT de Spolin (1992) com a teoria sociointeracionista de Vygotsky (2010), é possível apontar estes dois construtos teóricos como geradores de uma aprendizagem ativa, isto é, aquela que coloca o sujeito como agente e responsável pela construção compartilhada do saber.
A aprendizagem com base em jogos dá a possibilidade ao aluno de trazer sua subjetividade para solucionar problemas advindos dos jogos e principalmente contextualizar o novo conhecimento com a realidade social em que está inserido. Sobre a relação conhecimento e as implicações sociais, muito comuns durante a prática de JT, Oliveira e Rego (2003) apontam que:

A gênese da vida afetiva social é mediada pelos significados construídos no contexto cultural em que o sujeito se insere. […] É importante sublinhar que este processo não se concretiza de forma homogênea, conformando subjetividades idênticas, pois cada sujeito reage, elabora e lida de modo singular como as mesmas determinações e influências sociais. (Oliveira e Rego, 2003, p.23)

À luz desta citação, é possível dizer que os JT estreitam os caminhos entre o conhecimento real do aluno e o potencial, sendo este último entendido como aquilo que o aprendiz possa vir a aprender. Além disso, durante a execução dos jogos é respeitado o sujeito, suas subjetividades, potencialidades e interação com os colegas e o próprio mundo em que está inserido.
Como último ponto de interseção entre a teoria de Vygotsky e os JT temos a mediação, que, segundo Fichtner (2010), é entendida como:

As relações dos homens com o mundo não são diretas, mas profundamente relações mediadas. A transformação do mundo material, mediante o emprego de ferramentas, estabelece as condições da própria atividade humana e sua transformação qualitativa em consciência. A atividade do homem é pressuposto desta transformação e ao mesmo tempo o resultado dela. (Fichtner, 2010, p.16)

Diante da citação, é possível aludir que o desenvolvimento da aprendizagem é um processo de relações mediadas, nas quais estão inter-relacionados o conhecimento prévio do aluno e aquele que irá adquirir por meio da interação com conteúdo, com os colegas e com o próprio meio.
Sobre esse tipo de aprendizagem, Oliveira e Rego (2003) a classificam como “mediação de instrumentos” em que a relação entre a ação concreta do indivíduo e o concreto com o que o mundo oferece. Em consonância com estas vertentes temos os JT, que apresentam em suas características a mediação de uma situação problema, cujo intuito é construir o conhecimento, momento em que os alunos podem utilizar e compartilhar suas ações a fim de atender às instruções, regras e objetivos do jogo. Cabe ressaltar que todas estas ações ocorrem de maneira concomitante e levam em consideração os aspectos sociais, históricos e individuais dos alunos.
Para melhor compreensão, selecionamos alguns JT (Anexo l) com objetivo de ilustrar sua aplicabilidade, assim como relacioná-los com a teoria sociointeracionista.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao término dessa pesquisa, identificamos que os JT constituem uma prática possível e que atende um contexto educacional que valoriza os conhecimentos reais dos alunos, o contexto em que estão inseridos, oferecendo-lhes oportunidades de desenvolvimento do conhecimento concreto e significativo, e que a teoria sociointercionalista proposta por Vygotsky vai de encontro ao que os JT propõem, na medida em que esses promovem a interação, o aprendizado mediado e em grupo, mas sempre respeitando o tempo de cada aluno.
Concluímos também que a prática dos JT vão de encontro ao que os PCN propõem sobre o ensino de teatro nas salas de aula, os jogos desenvolvem nos alunos capacidades que contemplam os eixos citados no documento, tornando-os mais expressivos e comunicativos, promovendo a prática social de acordo com a realidade do aluno e estimulando a vivência em grupo, desenvolvendo capacidades que tornam os alunos mais autônomos e capazes de encontrar soluções diferentes diante de situações-problemas presentes nos JT; pois durante a vivência dos JT, os alunos são criadores das próprias soluções diante do problema a ser solucionado, nesse momento o professor age como mediador, dando instruções e não soluções prontas.
Nessa perspectiva, JT e a teoria vygotskyana tem uma relação direta, pois Vygostsky (2010) quando descreve a ZDP, deixa evidente a importância da mediação no processo de ensino aprendizagem, através da mediação que se dá durante o JT pelas instruções dadas pelo professor, o aluno desenvolve seu conhecimento potencial, sendo capaz de descobrir a seu tempo uma solução possível para o problema apresentado, no caso dos JT, dado através do foco.
Podemos afirmar assim que esse trabalho cumpriu com o objetivo desejado, pois após a pesquisa bibliográfica pudemos verificar que existe uma relação consideravelmente relevante entre o que os JT sugerem e os apontamentos de Vygotsky a respeito da aprendizagem interativa.
Não pretendemos com esse artigo, colocar os JT como única forma de aprendizagem nas salas de aula, mas sim demonstrar sua importância para a formação de alunos mais independentes, criativos e construtores do próprio saber, através de atividades prazerosas e que valorizam a participação de todos os envolvidos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARBOSA, Ana Mae. Inquietações e Mudanças no Ensino da Arte. São Paulo: Cortez, 2007.

BRASIL. Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 24 dez. 1996. Disponível em URL: http://portal.mec.gov.br/seed/arquivos/pdf/tvescola/leis/lein9394.pdf

BRASIL. Parâmetros curriculares nacionais. Secretaria de Educação Fundamental. Ensino de primeira à quarta série (Artes) – Brasília: MEC/SEF, 2001.

COURTNEY, Richard. Jogo, Teatro e Pensamento: As Bases Intelectuais do Teatro na Educação. São Paulo: Perspectiva, 2003.

FARIA, Alessandra Ancoda de. Contar Histórias com o Jogo Teatral, Dissertação de Mestrado em Artes Cênicas, Universidade de São Paulo. São Paulo. 2002.

FICHTNER, Bernd. Introdução à abordagem histórico-cultural de Vygotsky e seus colaboradores. Porto Alegre: UFRGS, 2010. Disponível em: http://www3.fe.usp.br/secoes/inst/novo/agenda_eventos/docente/PDF_SWF/226Reader%20Vygotskij.pdf. Acesso em 15 nov. 2014.

KAMEL FILHO, Armando Chafik Abu. Jogos teatrais na escola: um estudo de caso acerca de interações e aprendizagens. Dissertação de Mestrado em Educação. Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo. Vitória. 2009.

KOUDELA, Ingrid Dormien. Jogos teatrais. São Paulo, Perspectiva, 1992.

_____________________. Jogo e Texto: uma didática brechtiana. São Paulo, Perspectiva, 2010.

_____________________. A nova proposta de ensino do teatro. Sala Preta, São Paulo, n. 2, p. 233-9, 2002. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/salapreta/article/view/57096. Acesso em: 20 de out. de 2014.

LOMBARDI, Lucia Maria Salgados dos Santos. Jogo, brincadeira e prática reflexiva na formação de professores. Dissertação de Mestrado em Educação. Universidade de São Paulo, São Paulo. 2005.

OLIVEIRA, Marta Kohl & REGO, Teresa Cristina. Vygotsky e as complexas relações entre cognição e afeto. In: Afetividade na escola: alternativas teóricas e práticas. São Paulo: Summus Editorial, 2003.
PINHEIRO, Adalberto Vitor Raiol. Contribuições dos Jogos Teatrais para o ensino de língua estrangeira (italiano). Dissertação de Mestrado em Letras, Universidade de São Paulo. São Paulo. 2014.
RIBEIRO, Juscelino Batista. Contribuição do teatro à Educação. In: MACHADO. Irley et.al. Teatro: ensino, teoria e prática. Uberlândia: EDUFU, 2004.

SPOLIN, Viola. Improvisação para o teatro. São Paulo: Perspectiva, 1992.

____________.Jogos Teatrais: o fichário de Viola Spolin. São Paulo: Perspectiva, 2006.
VYGOTSKY, Lev Semenovich. A formação Social da Mente. O Desenvolvimento dos Processos Psicológicos Superiores São Paulo: Martins Fontes, 2010.
_________________________. El desarrollo de los procesos psicológicos superiores. Barcelona: Crítica, 2000.

No comments yet.

Deixe um comentário

*